Registros do Programa Pedagogia da Imagem do Museu da Imagem e do Som de Campinas

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terça-feira, 25 de maio de 2010

Compartilhando nossas reflexões na Semana dos Museus


Seguem abaixo algumas reflexões que tivemos a oportunidade de compartilhar com os participantes da Semana dos Museus do MIS, durante a palestra e a exibição de filmes produzidos na Pedagogia da Imagem, no último dia 20 de maio de 2010, às 14h.


Caros participantes da Semana dos Museus do MIS,
nossos convidados, interlocutores, amigos,

boa tarde!

Antes de tudo, gostaria de agradecer a gentileza de terem atendido ao nosso convite e vir dedicar uma tarde de sua vida a esse nosso encontro. Um encontro que, ao que parece, está se configurando como um novo espaço de diálogo entre vocês e o programa educativo do Museu da Imagem e do Som de Campinas: pela segunda vez consecutiva, a Pedagogia da Imagem promove uma palestra na Semana dos Museus do MIS. E, aqui, cabe o nosso agradecimento à chefia do Museu e à coordenação da CEC pela acolhida de nossa proposta. Este ano, com duas felizes conquistas: a primeira, o fato de que a sala está plena de interessados no que temos a dizer, num horário em que não temos atividades programadas com nossos habituais frequentadores, e a segunda, o fato de termos integrado nossa programação na campanha nacional do Ministério da Cultura.

Para nós, a Semana dos Museus se reveste de sentidos muito especiais. Dia 18 de maio é o dia internacional dos museus. Seria apenas mais uma efeméride, se não representasse um momento no qual tentamos condensar tudo aquilo que realizamos em nosso cotidiano – as nossas ações, as nossas reflexões, as nossas parcerias, as nossas produções, as nossas angústias (por que não?), a leitura que fazemos do cenário em que atuamos e o projeto de museu que dia-a-dia pomos em prática – e, de uma forma clara, transparente, expomos à apreciação de vocês, ao questionamento, ao debate, à transformação. Entendo, pois, esse nosso encontro na Semana dos Museus como um espaço de participação social, que, espero, seja cada vez mais apropriado por vocês e por mais campineiros. Portanto, a Semana dos Museus é, para nós, um momento de criação e recriação coletiva do MIS.

É por este motivo que a minha palestra aqui não poderia ser tomada em outro sentido que não o de uma conversa e uma troca de idéias. Não venho aqui à frente falar como uma especialista que dita verdades ou recomendações técnicas. Venho aqui como uma profissional curiosa, consciente do papel da instituição na qual exerço meu trabalho, mas, sobretudo, instigada pelo meu fazer, pela riqueza que o encontro com o outro me traz, ansiosa por compartilhar as inquietações que esse fazer produz em mim. Se me coloco aqui à frente e trago um texto a público, não é para convencê-los de meu ponto de vista, mas para que vocês possam ampliá-lo, refiná-lo e ajudar-me a afinar os instrumentos que usamos para orientar nossa difícil jornada, que é a produção de um museu.

O fio que escolhi para me conduzir nessa exposição é a própria temática proposta pelo Conselho Internacional de Museus para a reflexão neste ano: “Museus para a harmonia social”. Um mote aparentemente simples e consensual, mas por isso mesmo propenso a abrigar algumas armadilhas. Vamos a elas.


Já de imediato, o tema remete ao papel social e político do museu. Político porque a produção do consenso ou da harmonia entre diferentes interesses constitui a própria definição da política. Primeira armadilha, então: o papel do museu não é primordialmente político, e sim, cultural. E, se a política o perpassa, é porque ela é inerente a toda atividade humana. Penso que é, portanto, a partir do campo que lhe é próprio, o campo cultural, que o museu exerce sua função política na sociedade. Segunda armadilha: é que a própria visão da sociedade – o que ela é e o que deve vir a ser – não é a mesma para todos os grupos que a constituem. Vamos, então, empreender um exercício crítico e contextualizar que sentidos adquirem para nós os termos dessa sentença: o social, a harmonia e o museu, e como nós preferimos articulá-los. Fazendo isso, deixamos claro o ponto de vista que norteia nossa ação educativa, o programa Pedagogia da Imagem.

Pois bem, encaremos a primeira tarefa: que desafios a sociedade nos apresenta para a construção da harmonia? São grandes desafios, complexos, alguns deles globais: a necessidade de rever o conceito de desenvolvimento (colocando à frente não o desenvolvimento econômico, mas o desenvolvimento ético e integral do ser humano); a promoção do entendimento, da paz e da solidariedade entre os povos (não estou falando aqui de harmonia, mas do esforço para pôr fim ao sofrimento de numerosas populações submetidas à fome, às doenças e toda a sorte de mazelas por conta dos conflitos armados ou da indiferença das demais nações); e ainda o desafio da sustentabilidade, da produção de modos de vida que não ameacem a sobrevivência das futuras gerações ou que não signifiquem a sua privação do acesso à água, às fontes de alimentação, mas também à biodiversidade, à beleza, à cultura. Há inúmeros outros e, possivelmente, esses três que eu elegi não sejam as prioridades na pauta das cúpulas internacionais. Para provar isso, basta compararmos quantas centenas de bilhões de dólares os países mais ricos investiram nos bancos e indústrias para salvar o sistema financeiro mundial, com as quantias – várias vezes menores – que seriam necessárias para erradicar a fome, a miséria e diversas doenças nos países mais pobres. Basta pesquisarmos quanto se investe nas guerras pelo domínio dos poços de petróleo no mundo, promovidas a pretexto de libertar as nações aos tiranos, enquanto inúmeros conflitos locais persistem por décadas arrasando os países da África, por exemplo, sem merecer a atenção e a intervenção dos organismos internacionais. Basta lembrarmos que o protecionismo aos setores industriais tem impedido o estabelecimento de metas efetivas para a redução dos níveis de poluição de CO2, independentemente da polêmica sobre se há ou não um processo de aquecimento global em curso.

Temos também desafios que são históricos, próprios do nosso país e de nossa metrópole. O primeiro seria o de avançar no reconhecimento, na garantia e na proteção dos direitos humanos, fazer valer de fato o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, a igualdade entre os gêneros e as etnias. Temos também o desafio de promover a justiça social e a verdadeira igualdade de oportunidades para as populações que historicamente têm ficado à margem da cidadania. O desafio de promover o direito à cidade enquanto um espaço de manifestação das nossas identidades socioculturais, um espaço que carregue as marcas e as memórias do que somos e do que fomos, onde o patrimônio natural e cultural seja reconhecido, valorizado e protegido porque efetivamente apropriado por todos, patrimônios que muitas vezes nem chegaram a ser revelados e se perdem sem que possamos nos dar conta disso. O desafio de avançar na educação, um instrumento sabidamente necessário para a superação da exclusão social, a erradicação do analfabetismo, o que só será possível na abertura do ensino formal a outras formas de aprender e produzir conhecimento, formas que nascem no encontro com os saberes populares, no respeito e no acolhimento às diferentes dinâmicas de aprendizado, das histórias e projetos de vida dos sujeitos educandos. Uma educação que contemple o direito à comunicação e forme cidadãos emancipados, aptos a se pronunciar e construir, na participação social, o seu país.

Se, por um lado, sabemos que todos esses direitos não são dádivas, mas são efetivos quando são uma conquista, fruto do amadurecimento das vontades e das lutas dos movimentos sociais organizados, por outro lado, ainda que façam parte da legislação estão constantemente postos em risco, antes de mais nada, pelos interesses do capital. As igualdades, por exemplo, hoje parecem ter se convertido na padronização dos gostos e do consumo que apaga as identidades e os lastros culturais. A inclusão prometida pelo mercado de trabalho ou de consumo é ilusória, porque é uma inserção numa estrutura estratificada cujos papéis reservados à maioria são pré-determinados, coadjuvantes, e não estão igualmente disponíveis à escolha de todos. O direito à cidade é constantemente ameaçado pela especulação imobiliária, que define quem pode ou não ter acesso a cada zona e quem pode ou não circular pelo território urbano. O patrimônio e a memória, convertidos em mercadoria/entretenimento, se esvaziam de seus sentidos e de seu papel integrador. A educação se converte em geração de capital humano. O direito à comunicação é solapado pelo apagamento simbólico dos sujeitos, grupos e vozes destoantes da imagem propagandística destinada a reproduzir esse sistema. Não há, pois, qualquer motivo que nos leve a crer que a inclusão de mais indivíduos nesse esquema contribua para produzir a tal harmonia social. Ao contrário, podemos prever mais desagregação, violência e opressão.

O que significa, então, construir uma harmonia social neste cenário? Será que corremos o risco de sermos submetidos a uma harmonia construída e imposta artificialmente por meio de um regime político autoritário, que apaga as divergências e cala os descontentes com a censura, a tortura e o extermínio, como vivemos nas décadas de 60, 70 e 80 no Brasil? Pouco provável, ainda que aqui e acolá se levantem uns e outros saudosos da ditadura, teimando em ignorar os abusos e os crimes cometidos contra a humanidade. Na conjuntura atual, a ameaça totalitária pode prescindir desses recursos mais óbvios e tidos como inaceitáveis pela ideologia democrática da qual ela mesma se reveste. A sua face terrível hoje se camufla suave e docemente em promessas de crescimento econômico, de ascensão ao consumo pelo trabalho e de construção de uma democracia baseada no voto, promessas essas alimentadas e veiculadas no brilho alegre e fugidio das imagens midiáticas. Quem não se deixa seduzir por elas? Quem ousa contestá-las, dizer que são enganosas? Talvez alguns poucos, já considerados renitentes fora de moda. A esses, talvez já não seja preciso calar à força, baixar AIs: basta apenas garantir que não apareçam nos telejornais. É suficiente que os meios de comunicação, concessão pública nas mãos de apenas onze famílias, consigam veicular seu discurso afinado, que desqualifica ou simplesmente sobrepõe e ignora qualquer voz dissonante. Seu pensamento único se esforça por se passar por pluralismo e é o primeiro a denunciar como censura qualquer tentativa de controle social. Em altos brados, defendem a liberdade de pensamento e expressão – desde que todos pensem como eles, os únicos que podem de fato se exprimir. Então, já não faz mais sentido instalar uma ditadura. Basta que se gere a violência e se alimente o medo e o terror, para, em seguida, acenar com a ordem e a segurança, calcada na vigilância e na repressão abusiva sobre os que a perturbam: trabalhadores em greve, sem-terra, sem-teto, sem-direitos, sem poder de consumo, os que não têm voz, nem títulos acadêmicos, nem a quem recorrer. É sobre os indivíduos mais fragilizados que impõem sua força. Força ou covardia, essa a dos que se aproveitam de sua situação privilegiada?

Não, obrigada. Essa harmonia assim produzida, eu não a quero. É um quadro triste, essa possibilidade. E apesar de parecer a única alternativa, confio que há outras saídas. A dor de meus irmãos excluídos, eu a sinto solidariamente, mas não me causa sofrimento: apesar de tudo estamos vivos. E isso, sim, é ser forte.

Tenho esperança porque não estou isolada. Conheço muitos que, por aí afora, concebem a sociedade a partir de outros princípios, sentidos e possibilidades. Pensam e compõem, na sua prática cotidiana, talvez mesmo sem saber, uma harmonia que se articula a partir da polifonia e do respeito às diversidades. Como uma orquestra, onde os instrumentos diferentes desempenham seus papéis, sem que qualquer deles se sobreponha aos demais. Harmonia que significa a capacidade de orquestrar, na ação social, os diferentes interesses, as divergências culturais, de pensamento e de projetos, garantindo a todos os sujeitos e grupos as condições de participação. Entenda-se: muito mais que o voto, a participação envolve a capacidade do cidadão de produzir uma leitura do cenário social, a partir de seu ponto de vista, e de projetá-lo e defendê-lo com visibilidade e legitimidade na esfera pública, e de concertá-lo com os demais. Tenho confiança nessa possibilidade porque, como Paulo Freire, penso que nossa vocação última é a humanização.

Tendo esclarecido o que entendemos por harmonia social, podemos, enfim, refletir sobre o papel do museu na sua construção. Nossa missão é bastante conhecida: contribuir, a partir da relação de apropriação dos bens preservados como patrimônio, para a educação dos nossos cidadãos, o que significa contribuir para a formação da sua subjetividade. Esse processo educativo e de apropriação, entendido de maneira libertária, envolve três importantes aspectos: a identidade e a memória, o diálogo e o exercício criativo da linguagem.

O ponto de partida para a educação libertária não é o objeto de conhecimento (no caso, o bem-patrimônio), mas é sempre o que nos constitui. Esse ponto de partida é a nossa identidade, formada pela história de vida que resulta não apenas da trajetória individual, que é única e nos distingue dos demais seres humanos, mas que também se insere num contexto social mais amplo. Se é verdade que com nossas escolhas podemos criar nosso presente, não o fazemos a partir das condições que desejamos, mas das circunstâncias que nos são oferecidas historicamente. Produzida de maneira singular, tecida particularmente a partir dos recursos de que cada um dispõe diversamente dos demais, nossa identidade é, portanto, marcada social e culturalmente por tudo aquilo que partilhamos com nossos contemporâneos. Daí decorre que a educação libertária não se faz isoladamente, mas no diálogo. É no encontro com o outro que podemos nos libertar de nós mesmos, que nos salvamos de nos levar tão a sério. É no confronto com o diferente, o diverso, o múltiplo, o estranho, o estrangeiro, que descobrimos questões que nunca antes nos colocamos, que relativizamos nossas certezas, que damos outros pesos e outras medidas aos nossos valores e nossos problemas. Condição para esse encontro, esse encontro, esse diálogo, essa convivência, é o exercício da mediação, tarefa que só é possível no exercício criativo e criador das múltiplas linguagens pelas quais produzimos nossa realidade.

Se há, pois, uma tarefa que cabe ao museu, urgentemente, é a educação para o exercício das linguagens. Não é ditar o conteúdo das identidades coletivas, locais ou nacionais, sacralizando como geral a memória de um grupo particular. Também não é nosso papel produzir a voz ou a imagem dos diferentes grupos sociais. Não. Nosso papel é mais simples, mais sutil: oferecer o espaço para a manifestação cultural de todos os grupos sociais, pôr em diálogo suas diferentes expressões, e, ao fazê-lo, contextualizá-las, relativizá-las, oferecendo condições para a sua apreensão crítica, estética e sensível, em outras palavras, para a sua necessária desmontagem e desconstrução, para a compreensão da sua natureza discursiva. É, ainda, nos deslocar de nosso próprio lugar de fala, compartilhando os saberes que nos são próprios, as linguagens e as tecnologias pelas quais narramos a memória, tecemos identidades, construímos pontes e diálogos entre as culturas. Um museu assim, que se dissolve, se dissipa e se entranha na sociedade, e não obstante, torna-se ainda mais significativo.

Portanto, é cumprindo seu papel cultural, esse papel de re-humanização, que o museu desempenha seu papel político: o de produzir uma nova prática, que engendra um novo humano: mais aberto, sensível, solidário e afeito às diferenças, que se projeta na sociedade relativizando seus pontos de vista, sujeito histórico e agente político que harmoniza, na pluralidade das vozes sociais, seus interesses aos demais.

Dito desta maneira, parece um programa idealista e utópico, distante da realidade e difícil de se concretizar. Para nós, não se trata de um programa, a ser alcançado um dia. Trata-se da intenção que imprimimos em cada uma de nossas ações. É assim que definimos, por exemplo, a programação da Semana dos Museus. Assim elegemos, também, nossos projetos prioritários. Estão em curso, por exemplo, dois projetos na Pedagogia da Imagem: o primeiro é a orientação da produção de um vídeo sobre a participação social na construção do SUS na Vila Costa e Silva, com a metodologia da história oral, projeto que reflete sobre a participação social, sobre a cidadania, sobre os movimentos sociais; e o segundo é, para breve, a inauguração de uma exposição (que será uma exposição itinerável) sobre as transformações urbanas do centro de Campinas nos anos que vão de 1940 a 1960, aproximadamente. Trata-se da exposição Em obras, cuja discussão de fundo é a discussão do direito à cidade. Poderia citar outros exemplos, como a orientação do vídeo Assembleia do Povo, que será exibido e debatido na nossa programação do sábado, às 19h30, ou do Câmera da Loucura, na segunda-feira passada. Além, é claro, dos cursos que estamos ministrando e nos quais colocamos a ênfase não no aprendizado da tecnologia ou da imagem, mas sobretudo no diálogo cultural, no resgate dos saberes populares e na sua incorporação aos processos educativos formais e não-formais das instituições de ensino e assistência. Ainda, poderia dizer da forma participativa como o Orestes vem orquestrando a programação das exibições e debates de filmes, os projetos de produção de vídeo popular. Mas prefiro, agora, mostrar que esses princípios não vêm do nada, não vêm da teoria, mas vêm da prática não somente nossa, mas de todos os participantes da Pedagogia da Imagem. Mostrar através da produção deles, dos vídeos que selecionei para exibir hoje. No programa: Fazendo a diferença, documentário de 12 minutos das professoras Graziele e Sônia, da EMEF Dulce Bento Nascimento, sobre a educação das crianças surdas; Favela sinistra, animação de 3 minutos que foi finalista de 2009 no 5º Concurso Causos do ECA, Oi, tudo bem? Um papo sobre sexo e prevenção, documentário com 12 minutos onde o destaque é o protagonismo dos adolescentes e, por fim, Infância, memórias e brincadeiras, com 30 minutos, cuja intenção foi trazer para dentro da escola os saberes e a cultura popular relativos às brincadeiras, histórias, cantigas que fazem parte da nossa identidade brasileira. E, então, abrimos o debate para a participação de todos.

 

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